Pesquisadores estimam que seja um dos maiores do RS! Em Dona Francisca, as enchentes de maio trouxeram à tona um sítio arqueológico habitado por indígenas guaranis provavelmente 5 mil a 10 mil anos atrás
A história é feita de fragmentos. Pedaços de cerâmicas e pedra lascada, quando relacionados ao seu contexto, revelam partes importantes do passado. Em Dona Francisca, as enchentes de maio trouxeram à tona um sítio arqueológico habitado por indígenas guaranis provavelmente 5 mil a 10 mil anos atrás, segundo historiadores da UFSM. Em meio a crateras em uma lavoura de arroz abertas pela correnteza do Rio Jacuí, milhares de fragmentos de potes de argila e pedras lascadas usadas por uma antiga aldeia indígena afloraram e chamaram a atenção de agricultores, que avisaram as autoridades. A quantidade de fragmentos impressionou os pesquisadores da UFSM, que estimam que o local abrigou uma aldeia de 300 guaranis. Os achados, ainda recentes, indicam os grupos que habitavam a região e ajudam a contar a história do Rio Grande do Sul. Pesquisadores estimam que o sítio seja um dos maiores do Estado já encontrados até agora.
Os guaranis viviam no Rio Grande do Sul antes de gregos e romanos civilizarem a Europa. Eles ocuparam o sul do país entre 5 mil e 10 mil anos atrás. Caracterizam-se pela horticultura e o manejo da natureza. Apesar de não serem considerados nômades, são grupos que realizavam migrações de tempos em tempos na busca pelas “terras sem males”. Em outras palavras, locais favoráveis ao cultivo de alimentos como a mandioca e o desenvolvimento da agricultura. Conforme o arqueólogo e professor da UFSM João Heitor Macedo, os guaranis vieram da Amazônia “descendo” pelas bacias hidrográficas, em busca de uma mata similar à que viviam no norte do que tornou-se o Brasil:
– Fala-se, por meio de pesquisas arqueológicas sobre o Estado, que, quando os europeus chegaram aqui, existiam mais de 200 mil guaranis. Então, eles eram a maior população que existia no Rio Grande do Sul.
Milênios mais tarde, a cultura dos povos originários, enraizada no Rio Grande do Sul, manifestou-se nos fragmentos encontrados em Dona Francisca. As enchentes de maio provocaram mudanças na paisagem e no solo de diversas propriedades rurais. Uma dessas alterações, em que a chuva “lavou” uma plantação de arroz, trouxe à superfície materiais um tanto peculiares como pedaços de cerâmicas, peças com tintura característica dos povos indígenas e pedras incomuns. Os achados fizeram com que os moradores procurassem a Secretaria de Cultura e compartilhassem o fato pelas redes sociais. Não demorou muito para que o secretário da pasta, Ricardo Zimmer, entrasse em contato com a UFSM para entender a origem dos materiais achados. No dia 14 de junho, uma primeira visita a campo, liderada pelos professores Maria Medianeira Padoin e João Heitor Macedo, foi realizada. O resultado: mais de 200 materiais coletados para análise. Mais do que isso, registros importantes sobre a história do Estado.
– É um sítio arqueológico de importância gigantesca, pois vai nos dar muitas informações sobre todas as características desse grupo humano que viveu aqui antes dos europeus chegarem. Analisando tecnicamente a pintura até o tipo de confecção, as texturas, as grafias, a gente vai conseguir chegar no humano que confeccionou isso. E a partir dessas informações, entender a complexidade desse grupo, como resistiu tanto tempo, como se relacionava com o ambiente e como construiu a sua forma de organização – diz Macedo.
Quatro tipos de cerâmicas e pedras usados pelos guaranis foram achados
Uma análise inicial, realizada pelos pesquisadores, revela pelo menos quatro tipos de material achado no sítio em meio à lavoura: calcedônia, cerâmicas do tipo corrugado, pedras lascadas e peças com grafia (ou pinturas). A diversidade dos fragmentos históricos também evidencia a presença de diferentes grupos de guaranis, como os ceramistas e os caçadores-coletores, o que representa um período entre 5 mil e 10 mil anos atrás. Toda essa história está exposta em duas mesas na Secretaria de Cultura, que já são pequenas para a quantidade de peças. Em volta delas, olhos atentos de pesquisadores que apontam partes importantes do passado de Dona Francisca a cada novo detalhe observado.
O principal material encontrado foi a cerâmica, um tipo de cultura material muito específica dos grupos ceramistas que ocupavam o Rio Grande do Sul antes da colonização ibérica. O arqueólogo explica que as peças do tipo corrugado eram feitas com roletes sobrepostos. Na tentativa de desvendar a técnica, ele conta que os artesãos faziam uma espécie de cobrinha com a argila, colocavam uma sobre a outra e, para grudar, usavam as impressões digitais.
– Esse foi o recurso mais rico que encontramos, e isso dá uma dimensão da importância do que achamos em termos de quantidade, variação e tipologia. Então, por essas características já conseguimos identificar que faz parte da tradição ceramista dos tupi-guaranis que chegam aqui no Rio Grande do Sul por volta de 5 mil anos atrás – diz Macedo.
Outro grupo, o de caçadores-coletores, foi identificado a partir da presença da pedra lascada, utilizada para afiar lanças ou criar objetos cortantes. Cada parte da pedra, com uma análise mais aprofundada, pode revelar detalhes sobre como viviam os povos naquela época. É como se cada lasca deixasse as ações humanas que incidiram sobre ela registradas. As pinturas indígenas que, até hoje, manifestam a identidade dos povos originários, resistiram ao tempo e se somam aos achados do sítio arqueológico. Peças com grafias em vermelho e com uma base de tinta em tom mais claro chamada de engobo surpreendem pela técnica aguçada capaz de atravessar milênios. Mais do que isso, mostram a espiritualidade dos guaranis. Conforme os pesquisadores, esse tipo de peça em cerâmica era usada em rituais de fertilidade, cura ou desenvolvimento da horticultura.
Para cada fragmento, uma parte da história gaúcha
No caminho até o sítio arqueológico, as marcas das enchentes ainda são evidentes. Ruas alagadas, lavouras vazias, árvores arrancadas pela raiz e as marcas da lama nas casas fazem companhia no trajeto. Na chegada, a ida a campo é antecipada por um trecho de aproximadamente 500 metros que precisa ser feito a pé pelas condições da estrada. Botas, garrafas de água e baldes preparam os pesquisadores para a segunda coleta de material realizada na última quinta-feira. A primeira havia sido para um resgate emergencial realizado no início de junho, antes da segunda enchente, quando os pesquisadores foram avisados pelo agricultor Diogo Fernandez, 36 anos, sobre os materiais nunca vistos antes pelo morador. O temor era que a nova enxurrada levasse embora os fragmentos.
– Encontrei no acaso, caminhando por ali. Foi quando mostrei pro Ricardo (secretário de Cultura) e, depois, fomos achando mais coisa. Jamais esperei fazer parte de tudo isso, parece algo bem importante para a nossa cidade – diz Diogo.
A soma de todos esses fragmentos, conforme os pesquisadores, mostra a importância do achado em Dona Francisca, que pode ser considerado um dos maiores sítios arqueológicos do Rio Grande do Sul, dada a sua diversidade e expansão:
– A variedade de materiais indica uma ocupação de longa duração, ou seja, vários momentos históricos até o início da colonização europeia. E também uma diversidade espacial muito grande, pois o sítio nas margens do Rio Jacuí tem um uma expansão de vários hectares. Todos esses artefatos dentro daquela paisagem, relacionada entre elas, ainda vão nos dizer de que grupo estamos falando, que datação estamos falando – afirma o arqueólogo.
A calcedônia, uma pedra avermelhada firme e pontiaguda, também está entre os achados do sítio arqueológico. Por sua característica, pesquisadores estimam que o material era usado na ponta da lança em hábitos como o da caça, característico dos povos indígenas.
Para cada fragmento, uma parte da história gaúcha
No caminho até o sítio arqueológico, as marcas das enchentes ainda são evidentes. Ruas alagadas, lavouras vazias, árvores arrancadas pela raiz e as marcas da lama nas casas fazem companhia no trajeto. Na chegada, a ida a campo é antecipada por um trecho de aproximadamente 500 metros que precisa ser feito a pé pelas condições da estrada. Botas, garrafas de água e baldes preparam os pesquisadores para a segunda coleta de material realizada na última quinta-feira. A primeira havia sido para um resgate emergencial realizado no início de junho, antes da segunda enchente, quando os pesquisadores foram avisados pelo agricultor Diogo Fernandez, 36 anos, sobre os materiais nunca vistos antes pelo morador. O temor era que a nova enxurrada levasse embora os fragmentos.
– Encontrei no acaso, caminhando por ali. Foi quando mostrei pro Ricardo (secretário de Cultura) e, depois, fomos achando mais coisa. Jamais esperei fazer parte de tudo isso, parece algo bem importante para a nossa cidade – diz Diogo. A ida a campo foi acompanhada pelos professores Maria Medianeira Padoin e João Heitor, a mestranda do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural Ariane Gassen Vargas e o graduando em História Matheus Xavier – integrantes do projeto de extensão UFSM Solidária e Cidadã. No início da lavoura, característica das plantações de arroz pela planície e umidade do solo, João Heitor avisa que, a partir dali, tudo faz parte do sítio arqueológico. Tão logo, começa a procura pelos materiais. A cada passo, a sensação é de uma nova descoberta. No chão, espalhados pelos hectares de terra, é possível encontrar inúmeros fragmentos de pedras e cerâmicas.
O mais importante é coletado e reservado para análise. Ao final da ida a campo, o material é levado até a Secretaria de Cultura e passa por uma primeira lavagem. O objetivo é, nas próximas semanas, criar um grupo de trabalho com professores e alunos da UFSM para uma análise mais precisa dos materiais. Com isso, será possível ter precisão sobre a definição da data e os grupos indígenas por trás de cada fragmento histórico. A estimativa dos pesquisadores é que exista muito mais material a ser encontrado que foi levado pelas águas ou soterrado pela lama que tomou parte da lavoura.
Além dos materiais que aparecem na superfície, outro indício de presença indígena pode ser visto no local. Manchas escuras, em um tom quase preto, revelam que ali houve ocupação humana. O arqueólogo explica que a chamada “terra preta dos índios” aparece na superfície porque os acampamentos indígenas deixaram uma espécie de húmus que cria uma camada de terra escura nos locais.
Para a pesquisadora Maria Medianeira, os achados são uma parte do passado e do presente, já que a descoberta em Dona Francisca agora será objeto de estudo, tanto nas escolas, quanto nas pesquisas universitárias:
– Está sendo bem importante esse primeiro resgate porque o território tem passado por várias inundações. E essa integração entre comunidade, prefeitura e universidade contribuem para a valorização da história e ampliação dela. Cada vez mais a história vai se reconstruindo. A própria tragédia vem trazendo outras possibilidades de ressignificação.
Educação Patrimonial
A participação da comunidade de Dona Francisca na descoberta do sítio arqueológico, para os pesquisadores, mostra sobretudo a importância da educação patrimonial. Achados como esse, que contam a história da região antes da chegada dos colonizadores, devem fazer partes de diálogos na escolas e na educação dos moradores a respeito do seu passado e origens. Para o arqueólogo João Heitor, o primeiro passo já foi dado a partir do entendimento da comunidade sobre o patrimônio:
– Essa pesquisa contribui para que o pilar da história indígena seja fortalecido a partir da própria identificação dos moradores com esse passado, já que partiu deles o conhecimento sobre o sítio arqueológico. Ninguém aqui, de maneira alguma, vai tomar posse do lugar onde foi coletado isso, mas a informação para nós é muito importante. Isso serve para reescrever a história do Rio Grande do Sul. Uma história muito mais ampla, plural e diversificada.
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